A gente só quer andar leve pelas ruas. Viajar e, numa cidade qualquer, flanar como se a alegria estivesse na volta da esquina. Andar sem preocupações e sem fardos nos ombros. Espiar as lojas, contemplar as pessoas, deslumbrar-se com as crianças, sorrir das madames com seus cachorrinhos e tomar um sorvete especial olhando a brisa mexer nas folhas das árvores.
Tem coisa mais simples e bela do que correr os olhos por um ipê-amarelo todo florido? Andar como quem levita. Quase todo mundo quer isso. Não digo todo mundo por ter a certeza de que existem todos os tipos de gostos e que não convém impor os nossos aos outros.
Andar sem pesos é, de fato, um exercício de leveza.
Por alguns minutos, tudo bem pensado, num trajeto de ônibus ou no recolhimento 'forçado' de um avião, a maior parte dos problemas se reduz ao que de fato é: vaidades, intrigas, fofocas, briguinhas absurdas. Uma inesperada e sensata clareza toma conta de nós e tudo entra nos eixos. Basta ter calma, bom senso e uma pequena grandeza para que o grande inimigo apareça como um mero desajeitado e a crise grave se transforme numa simples questão mal encaminhada. É como naqueles sonhos em que a gente tem uma grande idéia. Simples e perfeita. Acorda no meio da noite, ainda com um naco daquilo na consciência, e promete: amanhã vou fazer exatamente o que sonhei. Como não pensei nisso antes? Dorme-se de novo com a certeza de que se amanhecerá melhor.
No dia seguinte, o sonho evaporou. Não resta nada. Sim, resta uma vaga lembrança de uma grande idéia que se desmanchou no ar como um sorriso travesso.
Depois de alguns minutos de luto pela perda da grande sacada, a pessoa retoma o passo e vai em frente com a sensação de ter deixado passar o trem da sua história. Repete duas ou três vezes: por que eu não me levantei para anotar? Jura com sinceridade: da próxima vez, levanto, acendo a luz e escrevo tudo. Horas depois a promessa já se encontrou com a grande idéia esquecida nalgum desvão da memória.
Até que, diante de algo legal, o sujeito fica com aquela estranha sensação de já conhecer aquilo, de já ter pensado aquilo, de estar na presença de algo familiar. Mas não se lembra do sonho nem do esquecimento do sonho. Tudo se foi. Quase acertou. Como quem confere o resultado da Mega-Sena. Saiu um 07. O cara jogou 06. Nossa, quase, por um! Será que a distância entre 06 e 07 é menor que a distância entre 07 e 93? Não importa.
Tem histórias que a gente fica remoendo na cabeça até encontrar a melhor forma. Aí decide contar para alguém. Começa a falar e não é mais nada daquilo. A coisa murcha como uma bola velha. Nessas horas, sempre pensamos que os outros não fizeram bem a parte deles. Não ouviram direito. Não se abriram para nós. Não nos estimularam. Aquela certeza cristalina e simples de que uma pequena grandeza dá aos nossos problemas a dimensão que realmente eles têm é devorada por uma grande pequenez que nos faz hiperdimensionar o ridículo, valorizar ninharias, praticar escancaradamente a mesquinhez e querer pisar nos outros.
Esquisito o mundo, não acham? Tanta variedade, tanta coisa para amar e curtir!
E tanta gente para gostar só de uma coisa e repudiar todas as outras como inferiores ou sem qualidade. Como pode alguém se sentir superior por se considerar fashion ou usar esta ou aquela marca de roupa? Como pode alguém se sentir superior aos outros por ler este ou aquele autor? Como pode alguém se sentir melhor do que os outros por ouvir este ou aquele estilo de música? No fundo, seria mais razoável gostar de tudo um pouco e abrir os sentidos para as mais variadas experiências e estímulos.
Por que não se faz isso? Por que nos deixamos formatar no culto da unidade, da distinção e da competição desenfreada?
Sem mais nem menos, estive pensando nisso, com um torrão de terra roxa nas mãos, numa breve visita à cidade de Londrina. Fiquei hospedado num bom hotel quase no estacionamento de um shopping. Nada de errado. Pessoas gentis e lufadas de ar fresco. Fiquei, contudo, perguntando: de onde nos vem, de repente, essa vontade de pegar a terra nas mãos, de abraçar uma cidade e de ir ao encontro das pessoas com a inocência de uma criança sem medo? Minha única resposta: desse desejo de arrancar os pesos das costas e andar pelas ruas com a leveza dos passantes capazes de viver pequenas grandezas.
Juremir Machado da Silva é escritor, jornalista e historiador. É doutor em Sociologia pela Universidade René Descartes, Paris V, Sorbonne. Em Paris, de 1993 a 1995, foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, além de coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUC-RS, assina uma coluna duas vezes por semana no jornal Correio do Povo de Porto Alegre/RS.
Texto publicado no Jornal Zero Hora
Lançamento do livro "Getúlio" na Livrarias Porto, Londrina
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