sexta-feira, 2 de março de 2007

Até para os pós-punks o amor é importante

Polaquinho, a vida pós-punk exige muito Sonrisal. E para ser sincero, suspeito que o mundo foi contaminado com o tal do Enterobiofórmio — aquele remedinho para dor de barriga. A prisão de ventre é uma constante.

Mas não é disso que vim falar. Aqui estou eu, na plataforma do mundo para anunciar que a filosofia venceu, e mais precisamente a fenomenologia. É isso mesmo, caro Polaquinho de sardas e cabelos claros e olhos de quem viu o mar e o traz carregado na íris. Edmund Husserl conseguiu. Seu estudo das essências alcançou o patamar supremo dentro das escalas do conhecimento. Se não fosse assim, como seria diferente?
(ainda gosto dos Ramones, como todo mundo)

Batgirl nem ao menos suspeitava do que a estava esperando além da esquina. Com os pés apoiados em seus imensos saltos anabella descia a rua das Flores marchando ao ritmo do rebolado cadenciado que a vida lhe propunha.

(não são assim todas as mulheres, diria Warhool)
Laura pensava em outras lides, carregando uma grande sacola da Gap, consumia seus dedos no esforço de levar de um lado a outro da cidade um belo livro de arte comprado na Feira do Livro Usado. Depois de anos em louca procura finalmente encontrou a coleção de aquarelas de Hahushô. Sob seus pés sapatilhas de fibra de algum material oriundo da Indonésia ou Nova Zelândia, com solado Amazonas — o mais usado no mundo.

Cin ainda estava na cama, aproveitando o sábado de sol para ficar oculta e não queimar a pele alva e conservada em longas noitadas no Jame's. Sim, Polaquinho, ela retornou ao James depois de tudo o que aconteceu, e o fez em grande etilo, convidada pelo malfadado amor não amor de fato. O rapaz de desolada figura, após retornar para a noiva de anos, telefonou para avisar do acontecido. Como muitos daqueles rapazes que fazem o tipo Johnny Rotten que vai ao dentista, este não fugiu à regra. Apesar de querer de todo o seu âmago viver a tal da balada sem volta, acabou ancorado no cais da boa família e, pelo que tudo indica, vai se casar no próximo verão.

(aqui abro meu fatídico parênteses. O que realmente está acontecendo neste mundinho de coco acumulado nas fechaduras? Por mais que tentemos evoluir continuamos a viver e reviver os mesmos paradigmas da idade da pedra. Continuamos ser Flintstones em uma batalha dos sexos na qual apenas os bifes de brontossauro saem derrotados)
de qualquer modo, as três mulheres estão de algum modo se encaminhando para onde devem se encaminhar. Batgirl indo para a missão impossível de cortar os cabelos — apenas as pontas — e ainda ter tempo de retornar para casa e trocar de roupa para uma curta viagem ao paraíso curitibano — as praias de Santa Catarina!

(o paraíso tem nome: bombinhas.... que beleza!)

Laura pára na boca maldita para tomar um cafezinho e espairecer das necessidades que

— naquela época já faziam arte melhor que nossa arte de restos....sem pensar realmente que sua vida está para ser decidida nos detalhes.(ainda existem punks na periferia e na rua XV e andando pelos shoppings com suas roupas pretas, calças coladas e palavras que deviam ser agressivas mas se tornaram fashion demais para ofender qualquer um, mesmo as tias do Pedro)

Cin, na noite anterior bebeu a quinta caipirinha de vodka e olhou para o amor que poderia ter sido e não foi e disse com todas as palavras o que realmente pensava da situação. Com os olhos apertados pelo álcool e a língua um tanto engrolada, sorriu o riso irônico de Baco e

— desculpa, tá
— tudo bem

e tudo ficou por aí. Cin resolveu o resto de suas frustrações junto à privada da direita e Johnny Rotten fracassado foi para casa de táxi pois seu automóvel estava na oficina de polimento.

(E as essências, meu caro Polaquinho? Pois eu mesmo respondo, meu caro Polaquinho, as essências chegam na história de bicicleta)

Batgirl alcança a tal da esquina que ela não sabe que é uma esquina importante de sua vida e olha para os dois lados antes de atravessar.

Laura, com a sacola e o livro de seus sonhos continua caminhando, mas ainda sem entrar no campo de visão de Batgirl pois um homem de ombros largos e barriga mais larga ainda a impede de ir mais rápido. Cin está de pé, na janela do apartamento do amor que nunca pensou que poderia e parece que nunca será mais do que uma noite mal dormida e tenta ver além das nuvens se existe uma mensagem escrita por Ets.

(este é o núcleo da história que te conto hoje, Polaquinho. Percebeu o suspense. Na verdade, numa verdadeira narrativa punkosa devia haver um monte de pó branco na mesa do apartamento, Batgirl deveria estar meio surda devido ao ensaio da banda e Laura desejaria apenas um novo figurino para e adequar ao mundo novaiorquino que conhece apenas pelas revistas)

No momento que Cin cansa de olhar o céu, encara o chão distante sete andares e vê um ônibus sair do ponto sem dar seta. Um ciclista atento consegue desviar mas acaba subindo na calçada com as rodas trançando guidões e o corpo bailando um samba descompassado na tentativa desesperada de não atropelar ninguém. O homem gordo na frente de Laura pára abruptamente e Laura

— pelo amor de deus
dá a volta e fica exatamente na linha da bicicleta desgovernada.
(aqui tinha que ter a música, talvez Television, ou Clash, mas servia o Joelho de Porco)

Batgirl, ao desviar da roda traseira da bike, escorrega do alto do salto anabella e dá um dois cinco passos inúteis tentando recobrar o equilíbrio e(as essências, eu lhes digo, dominaram as escolas de conhecimento e) Cin, do alto do prédio respira aliviada e, percebendo o valor da vida, olha com certo carinho para aquele que não devia valer nada como amor mas bem cumpre a função de preencher os espaços múltiplos de sua solidão.

Mais tarde, comendo uma bomba na confeitarias das Famílias, vai ligar convidando-o para um cineminha. Está passando, na cinemateca, Sid and Nancy. Mesmo para os punks e pós-punks o amor é importante.

Wilson Sagae
Texto publicado no Jornal do Estado.

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