por Adriane Pasa
Sexta-feira à noite. Na locadora de vídeo, cansada de um dia de trabalho sem fim, vou direto à seção de lançamentos de filme arte. Toca meu celular.
- Oi, Adri. É o Lúcio. Tudo bem? Pode falar?
- Posso, claro. Tô na locadora.
- É que... Puxa, você é uma pessoa tão sensível e compreensiva. Gostaria de saber o que você acha de eu convidar a Ana para sair.
Tadinho. Já esperava que ele estivesse apaixonado por ela. Achei corajoso da parte dele ligar para mim, que sou tão íntima da Ana. Quer fazer a coisa certa.
- Puxa, Lúcio, nem sei o que te dizer...Você é um cara bacana sabe, mas não sei se ela ficaria a fim.
- Mas você acha que tenho chances?
“Chances”. No plural. O cara tá mesmo com alguma esperança, não posso desapontá-lo totalmente.
- Ah, eu acho que você deve ser sincero. Mas não pode ser muito persistente, muito chato. Ela gosta de caras mais “difíceis”, sabe.
Difíceis não é o mais correto a se dizer, mas sim estranhos. O cara tímido e bizarro que ainda mora com os avós, o ruivo comerciante de produtos químicos que tem uma banda de rock que nunca toca. Eu nunca vi, pelo menos. Mas não entendo nada de bandas locais. A vida amorosa da Ana dá um filme.
- Sério? Mas você acha que ela já percebeu algo?
- Acho que não.
Claro que a Ana havia percebido e até comentou comigo, mas sem chance. Não rolava, de jeito nenhum. Uma pena.
- O que você acha de eu mandar flores para ela? Tô pensando em fazer isso amanhã. Que tal rosas?
Rosas. Podia mandar uma de cada cor que não ia adiantar. Primeiro ia ficar toda envaidecida, mas depois ia reclamar o dia todo que não ganhou flores de quem ela realmente gostaria. Uma balzaquiana sem sorte no amor, “de que adianta esses caras gostarem de mim?”, tô até vendo.
- Ah, acho bacana. Toda mulher gosta de ganhar flores.
- Mas não tenho o endereço dela.
- Manda no trabalho. Para que serve uma mulher ganhar flores se não pode mostrar às amigas?
- Tem razão. Escrevi até um cartão. Bem bonito, eu acho.
- É. Escreve o que você sente. Elogie.
É o terceiro cara apaixonado por ela no mesmo ano. E isso que só estamos em fevereiro. Pelo menos não é chato como o Gustavo, que liga todo dia e fica mandando pps ridículos por e-mail. “Ninguém merece”, diz a Ana.
- Bom, mais elogio do que isso que eu escrevi é impossível.
- Então beleza. Ela vai adorar. Só não posso te garantir que ela vai querer sair contigo.
- Mas obrigado mesmo assim. Já me aliviou só de contar para você.
Enquanto isso tentava encontrar na prateleira algo que me interessasse, mas nos lançamentos não tinha nada que eu queria, e o resto estava locado. Droga. Sexta-feira é um saco encontrar os filmes que a gente quer. E o João esperando no carro, já devia estar impaciente. Subi as escadas, onde estavam os filmes de catálogo.
- De nada.
- Depois você me diz se ela gostou.
- Claaaaro que ela vai gostar.
Este “claro” foi meio exagerado. Mas também um certo consolo de amiga. Meus olhos percorriam rápido pelas capas dos DVDs, formando uma imagem efêmera e engraçada. Parecia que os rostos dos atores estavam dizendo algo sobre a nossa conversa. Não conseguia me concentrar nas duas coisas ao mesmo tempo. Parei em “Whisky”, um dos meus filmes favoritos. Aquela ilustração da capa, com os três atores tão caricatos e tristes, me fez voltar ao Lúcio, que além de apaixonado, é ilustrador. Então tornei a prestar atenção nele.
- Bom, não vou te incomodar mais. O que você está pegando aí na locadora?
- Ah, tô pensando em levar algum filme argentino ou mexicano.
- Boa. Talvez eu convide a Ana para ver um filme comigo. Depois das flores.
- Sim, ótima idéia. Ela também adora cinema.
Nisso eu já havia descido as escadas e estava no caixa, pagando. O menino da locadora me olhando e dando umas risadinhas. Ouviu parte da conversa, pois estava me acompanhando desde a entrada, sempre pronto a me dar dicas e a conversar sobre cinema. Deve ter me achado meio estranha neste dia, pois nunca falo tanto no celular e também nunca sou tão rápida para escolher os filmes.
- Bom, muito bom.
- Então tá.
- Então tchau, Adri. Obrigado mesmo e desculpe te incomodar. Até mais.
- Até mais, não há de quê.
Paguei, peguei meu recibo e os filmes e fui até o carro, onde estava meu marido. Ele odeia entrar na locadora comigo, pois eu fico horas lá dentro e ele sempre quer chegar em casa logo.
- Amor, faz tempo que você não me manda flores.
- Ué, mas eu já te mandei flores, quando namorávamos.
- Tá, mas é bacana mandar flores também depois que casa.
- Sim, eu sei. Mas já mandei depois que casamos, não?
- Não me lembro. Um dia você me manda flores de novo?
- No seu aniversário?
- Não, tá muito longe.
- Tá bom, um dia eu te mando.
Falou com uma expressão bonita, uma voz meiguinha. Aquela voz que os homens fazem para te consolar e fingir que estão preocupados por um momento.
- Mas manda lá no escritório.
- Ué, por quê? Posso te entregar pessoalmente.
- Não, não tem graça.
- Por quê?
- Porque ninguém vai ver.
- Ai, mulher tem cada coisa... Que filme você pegou?
- Amores Brutos.
- Só esse? Não acredito. Deve estar doente. Você nunca sai da locadora com menos de cinco filmes.
Verdade. Sexta-feira à noite dá uma sensação de que vamos ter todo o tempo do mundo para nos divertir e ficarmos em paz, sem telefone tocando e coisas chatas pra resolver. E o sábado e o domingo - dias tão longínquos - se tornam nosso objeto de desejo mais aflito, de forma que pegar muitos filmes significa que podemos fingir alongar essas horas de prazer e ócio.
- Não, é que o Lúcio me ligou bem na hora e eu acabei dispersando.
- Lúcio, Lúcio...Eu conheço?
- Sim, aquele menino que foi meu aluno e que agora faz mestrado em arte.
- Ah, tá. Rapaz bacana. Ele tá bem?
- Sim, queria minha opinião sobre a Ana. Ele tá a fim dela.
- Ah, é? Mais um que não tem chance.
- Sim, mas eu não falei isso para ele, é óbvio.
- A Ana vai acabar ficando solteira.
- Ai, não fala isso. Ela só é exigente demais.
- Quem escolhe demais...
- Bom, eu também sou exigente e não fiquei solteira.
- É, mas teve sorte de me achar. Sobre o que é esse filme?
- Ai, João, Amores Brutos, do Iñárritu, o mexicano. Aquele do 21 gramas, e que agora dirigiu Babel.
- É sobre o quê? Não é história triste, não? Não é aquele que tem um Rottweiller que é baleado, né? Odeio ver maldades com animais.
- Claro que é. Eu adoro esse filme, mas quero assistir de novo. Não achei outra coisa.
- Amor, não quero ver filme pesado. Não tinha nenhuma comédia romântica?
João estava num azedume, típico de homem cansado de sexta-feira à noite e sem muita paciência para amenidades femininas.
- Ah, não! Não vou gastar meu dinheirinho em filme ruim. Isso a gente assiste na TV a cabo.
- Quer passar na panificadora?
- Não, vamos direto para casa. Você acha que o Lúcio tem chance?
- Se a Ana fosse esperta, ficaria com ele. Mas como ela é uma enjoadinha, acho que não. Tadinho.
- Que triste, não?
- Tá vendo? Por isso que eu não gosto desses filmes de drama. De complicada já chega a vida.
- Mas pelo menos eu não tirei completamente a esperança dele. Sabe como é homem, vai ficar se achando uma vítima.
- Tá cheio de mulher no mundo.
- Sim, mas cada um quer aquela pessoa e pronto. É como filme. Cada um tem um gosto.
- Sim, e eu o-dei-o dramas.
- Mas você vai assistir comigo, não?
- Não sei, se começar a ficar pesado, eu não quero ver.
- Credo, amor, você é muito sensível às vezes. Estes filmes foram feitos para refletir, são histórias sobre a vida, sobre o que há de mais extremo no comportamento humano. Se fosse a Ana, com certeza ia querer assistir comigo. Sem estes cineastas, a vida seria muito chata. O cinema é uma arte onde podemos expandir a mente, ultrapassar limites, ter experiências visuais e sensoriais fantásticas. Filmes bons têm a vantagem de nos dar asas, encher nossa vida de emoções. Não importa se nos farão tristes por um momento, mas abrirão um universo de possibilidades que nos tornam mais felizes. Este filme que eu peguei pode ser dramático, mas não é piegas. Tem muita diferença. É um filme forte, denso, sujo, fala de perdas. O ritmo é fantástico e é um diretor super importante. Temos que assistir. Você entende?
- Vamos comprar pão. Tá me dando fome.
Adriane Pasa é minha amiga, colega de trabalho e minha sócia no Obra Aberta.
Ela é artista plástica, responsável por eventos culturais na Livrarias Curitiba, professora de artes, editora do Jornal Heterodoxo e uma das donas do Obra Aberta. UFA!!!
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3 comentários:
Essa história ficou muito engraçada. Posso visualizar claramente a conversa entre a Adri e o João...
"- Vamos comprar pão. Tá me dando fome." HAHA, cômico demais...
e eu consigo vê-la andando pela Cartoon e os mocinhos curiosos
que trabalham lá, só dando risadinhas ouvindo a conversa.
Fer, adorei a ilustra.
tá publicada acima.
beijão
FAN-TÁS-TI-CO!!! hahahahahaha
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