Cínthia me diz que preciso variar.
- Já que para uma mesa no El Bulli são 4 anos de espera, e aqui não tem restaurante croata, vamos a um espanhol aqui no centro. Você vai adorar o risoto de polvo deles. É famoso.
Desço do Monza argumentando que se Curitiba tivesse um verão de verdade, mediterrâneo, daqueles de fazer encharcar a camisa, então seria ao menos prazenteiro avançar além de portas de vidro para sentar em cadeiras comunais e me servir de uma sangria gelada a acompanhar um belo prato de Jamon e torradas ao azeite extra virgem.
(Para evitar parecer apenas um autor passando por uma crise de descaso com a vida, adianto que estou enjoado de comida de restaurante. Daquele sabor burocrático e da apresentação insípida).
Acomodados na mesa de canto, Cínthia tira do envelope as folhas impressas e enquanto lê, agradece por eu ter escrito o texto sobre os 400 anos da primeira edição do Quixote e,
- É sério?!
Miguel de Cervantes Saavedra [1547-1616], aos 20 foi condenado a perder a mão direita devido o seu furor em aceitar e provocar duelos; fugiu e tornou-se soldado; aos 24, na batalha de Lepanto, levou um tiro na mão esquerda e ficou aleijão; com 28 anos foi capturado pelos turcos e ficou refém-escravo durante 5 anos; então, em 1580, começou a publicar trabalhos.
- Quem ia saber, não é?
Deixando minha boa amiga em paz com minhas palavras, uso o guardanapo para limpar as migalhas que ficaram ao redor de minha boca, iluminando pedaços mínimos de queijo cabrales.
É o melhor livro de todos os tempos. Ou, pelo menos, o melhor livro de ficção. Foi assim que 100 escritores de 54 países decidiram. Dom Quixote, ou, para os puristas El ingenioso hidalgo Dom Quijote de la Mancha. Obra que teve a primeira parte publicada em 16 de janeiro de 1605 e a segunda em 1615.
Bebo um gole da sangria e volto o rosto para a janela, para o beiral da loja de departamentos, sob o qual um homem magro e velho, vestido com um terno puído, descansa a cabeça entre os joelhos.
Diz a tradição ter sido escrito, na prisão Argamasilla, em la Mancha, com a idéia de oferecer ao leitor, expresso de maneira clara, um retrato da vida real e seus modo; servindo também como narrativa a espelhar situações da vida do autor.
Com a pimenta tabasco entre os dedos, mexo nos talheres e brinco com o saleiro enquanto flutuo além dos paralelepípedos ensolarados, contanto as mil aventuras que não vivi, os milhões de caminhos que nunca pisei, as tantas horas que desperdicei com aquilo que poderia ter sido e nunca foi. Salgando a toalha de linho branco, enveredo por uma seqüência de pensamentos que não me traz outra recompensa que não seja a vontade de reiniciar a construção de mim sob a promessa de uma senda pessoal gloriosa.
Quixote, na velhice, se descobre cavalheiro e sai em andanças à procura da glória que apenas sonhou. Diferente de seu autor, que se aventurou antes da literatura, Quixote foi buscar sua ventura após ter consumido a juventude e ma dures em torno dos livros de cavalaria.
À sombra de um farto prato de paella, me dou conta que eu, como o velho a descansar na sombra da marquise, sou como tantos Quixotes, condenado a ser cavaleiro de triste figura pela simples e pura covardia de não abandonar o certo pelo incerto. Incapaz de escolher entre a verdadeira aventura e a verdadeira literatura, mofando no limbo de ser eu um comensal patético, dependente dos horários que a vida profissional impõe. Quase todos os dias caminhando pelas calçadas acidentadas a procura de um bom ambiente para fazer pousar glúteos entorpecidos, e então gastar duas horas de vida, a aprofundar a mágoa pela vida insípida que leva.
Cervantes faleceu em 1616, um ano após ter sido lançada a segunda parte do Quixote.
Cínthia descansa as folhas sobre o envelope.
- Nossa, já terminou? Estava bom?
Respondo um sim surpreso, diante do prato que nem percebi esvaziar.
- Que dia lindo, não acha?
Penso em discordar, desiludido após tanta elucubração, certo de que sem decidir que rumo dar à existência, por maior que seja o sabor oferecido pela vida, é impossível dela extrair prazer. Mas desisto. No cansaço de revelar o que penso e me roupa o paladar, vejo, do outro lado da rua, o velho entrar no automóvel e beijar no rosto a garota que sorri um riso filial, cheio de afeto e confiança.
Wilson Sagae, escritor e sócio do Bureau de Fatos.
Texto publicado na Revista Ler&cia
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